terça-feira, 5 de maio de 2020

Dia Mundial da Língua Portuguesa


Ouvi há pouco, no intervalo das "minhas" aulas na TV, que hoje se festeja pela primeira vez o Dia Mundial da Língua Portuguesa. A 4ª língua mais falada, no mundo. Falada por cerca de 260 milhões de pessoas!



A minha Pátria é a Língua Portuguesa - Fernando Pessoa

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio…” E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

“Livro do Desassossego”, por Bernardo Soares. Vol. I, Fernando Pessoa





20 comentários:

  1. GRANDE, não no sentido da extensão, postagem, mas no sentido qualitativo, Isabel !
    Os meus agradecimentos.

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    1. Obrigada eu, João, pela sua simpatia.

      Um beijinho e continue bem:))

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  2. Um Dia da Língua Portuguesa faz-me sentido. Quem seríamos se ela não existisse que é como quem diz, se a não tivéssemos inventado. Quem seríamos sem uma língua - qualquer que ela seja - para exteriorizar o que sentimos.

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    1. Pois...

      E a nossa língua é muito bonita!

      Boa noite:))

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  3. Quem me dera ter mais tempo para leituras! Obrigada pela publicação! :)

    Beijos. Boa tarde!

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    1. Como a compreendo! Digo o mesmo!
      Tenho muito trabalho, mas também sou um bocado desorganizada. Podia "arrumar" melhor o meu tempo...

      Enfim...

      Boa noite:))

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  4. Ainda bem!

    A Isa é francesa ou portuguesa? Tenho ideia que é portuguesa...

    Boa noite:))

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  5. belo e maravilhoso. beijos, pedrita
    http://mataharie007.blogspot.com/

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  6. Fernando Pessoa sempre enorme. Tenho o Livro do Desassossego sempre à mão, para "desassossegar-me" de vez em quando. Um beijinho

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    1. Uma boa ideia!
      Mas para desassossego já vai chegando a vida dos dias de hoje. Por isso imagino que o livro tem estado paradito!...ou não?

      Beijinhos e que continue tudo bem contigo e os teus. Gosto sempre muito de te ver aqui.

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  7. Gosto muito, muito, mas muito do Livro do desassossego. Mas há uma frase neste trecho que me irrita imenso, sempre me irritou e que vai destacada a preto: «Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.» Mas Pessoa era assim, genial mas com coisas para mim incompreensíveis.
    Boa tarde!

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    1. Concordo 100%.
      Apeteceu-me tirar essa frase, mas como tirei o excerto duma fonte que não o livro, achei que não devia. Se tivesse tirado directamente do livro, uma escolha minha, de certeza que cortava essa parte com [...].

      Mas cortando ou não ela está lá!

      Um bom dia, MR.

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    2. Invasão de calma, serenidade, amor, bons sentimentos... boas perspectivas... boas emoções... tudo algo, que jamais nos incomodaria, se fossemos invadidos...
      Esta invasão de Pessoa... certamente não teria mesmo nada a ver, com estratégias políticas, económicas, bélicas do poder pelo poder...
      O universo deste poeta... era um mundo à parte... deste nosso mundo, tão concreto e definido... ele mesmo afirma não ter nenhum sentimento politico ou social...
      As invasões mencionadas, referem-se a tudo o que de bom, nos inundaria... sem nos incomodar ou sufocar... no plano emotivo ou sensorial... em minha opinião, claro!...
      Beijinhos
      Ana

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  8. Claro! Isto tem a ver com o FP. :)
    Bom dia!

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  9. Costumo ter sempre este livro por perto... e gosto de o ir descobrindo ao caso... abrindo-o à sorte...
    Uma belíssima publicação, Isabel! Sempre maravilhoso, descobrir mais um pouco das palavras e genialidade de Pessoa...
    Beijinhos! Bom fim de semana!
    Ana

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