quinta-feira, 4 de junho de 2015

Já não se fazem ladrões como antigamente...


...principalmente porque muitos têm muito mais (milhões) do que aqueles a quem roubam :(


O Ladrão
                                           
                                                                        
"O Bloco passava lá fora, "experimentando" o carnaval. Minha amiga foi atender o telefone, e ao voltar viu que sumira o relógio de pulso, deixado sôbre a mesinha de cabeceira. Abriu a gaveta e examinou a caixa de jóias: vazia. Nada de preço, mas de estimação: colar de pérolas cultivadas, anéis, broches, essas coisas. Cada peça lhe viera de uma pessoa querida, e era como se os ofertantes vivessem ali, disfarçados e condensados pelo ourives. Minha amiga ficou aborrecida. Não que participasse do horror capitalista a ladrões. Sem capital, achava exagerado êsse sentimento. Nas vêzes em que discutira o problema, opinara quase favoàvelmente aos gatunos. Coitados, não tiveram boa formação familial: a miséria é grande e espalhada, o corpo social se caracteriza pelo egoismo. Erraram, apenas. E depois, tanto ladrão gordo por aí, recebido em sociedade, incólume, benemérito!
     Por isso mesmo, sentia-se chocada com o acontecimento. Por que lhe faziam uma dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, daria. Se não tinham coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem objetos caseiros, sem história. É certo que ladrão não pode saber se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o compra.
     Foi ao andar de cima conferenciar com o vizinho. Êle nada percebera, mas armou-se de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se êsse acidente geográfico retivesse propriedades maléficas, extensíveis aos indíviduos que o habitam. Mas enfrentar o morro, àquela hora da noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os suspeitos que passassem, e não passaram.
     Na noite seguinte, passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que, inteirada do fato, pensou logo em Curió.
     - Curió hoje de tarde estava querendo vender uns troços de ouro, umas correntinhas.
     - Então me tragam o Curió que eu quero conversar com êle. Mas por favor, não o maltratem, hein - pediu minha amiga.
     Curió apareceu pela manhã encalistrado, com os policiais. Pequeno, modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. "Não faça isso - ordenou-lhe minha amiga. Vamos conversar sentados no chão, que é melhor." Cosme e Damião preferiram ficar de pé, Curió não se fêz de rogado, e o vizinho adotou o figurino.
     - Curió, foi você quem levou minhas jóias de estimação?
     De cabeça baixa, Curió admitiu que sim. Passara por ali, à hora em que o bloco descia, viu luz acesa, nenhum movimento, janela baixa, e tal, ficou tentado. Conhecia de vista a moradora, até simpatizava com ela. Mas praquê deixar tudo aberto, exposto, provocando a gente?
     Lealmente, ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara.
     - Você fuma, Curió?
     - Aceito, madame.
     Cigarro ajuda a resolver. Cheio de boa vontade, Curió não podia restituir tudo. Parte dos objetos fôra vendida, os brincos ele dera a uma senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se madame não fizesse galho.
     - Estão aí com você?
     - Não, madame, mas pode fiar do meu compromisso.
     O vizinho ia exclamar: "Essa, não", porém minha amiga pediu-lhe que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando amigàvelmente. Aquela fôra a primeira vez, Curió vive de biscates, vida apertada, madame compreende. No outro dia voltou com as jóias, menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha amiga achou que não valia a pena magoar a môça, e louvou o desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa, encerador, bombeiro e cão de guarda, procurados há muito. O vizinho é que, indignado, e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se."
                               
1958

Carlos Drummond de Andrade, A Bôlsa & A Vida, pág.126 a 129.

                                                                                    
 

12 comentários:

  1. Respostas
    1. Infelizmente assim é Diana! E os maiores de todos andam por aí à solta a rir-se descaradamente do povo que os sustenta! Mas isso é outra conversa...

      Este ladrão da história era um ladrão simpático:)

      Bom fim-de-semana, que está aí à porta:)

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  2. Este episódio da A Bolsa & a Vida relatada por Drummond é curiosa !
    Segundo entendi o Curió passou a trabalhar para a Madame.
    Era um ladrão sério.

    Um beijo, Isabel.

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    1. Sim, também entendi assim. O Curió era um homem (quase sempre) honesto, que cedeu ali à tentação da janela aberta...e depois acabou tudo em bem, e com ele a trabalhar para a Madame.
      Achei muito gira. E a maneira de escrever é engraçada. Este livro tem textos muito giros.

      Um beijinho:)

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  3. Que bom seria, se todos os conflitos, se resolvessem na base da negociação...
    Muitas vezes, quem foi roubado, nem tem para quem apelar... estou-me a lembrar dos conflitos, já havidos durante esta tarde, com os lesados do BES...
    Beijos, Isabel! ♥ Um bom fim de semana!
    Ana

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    1. É o que penso, mas esta ladroagem de agora é uma coisa mais séria: é muito bem organizada e não se contenta com umas coisinhas sem grande valor...
      Não consigo perceber como é que nunca ninguém é responsabilizado...

      Beijinhos e um bom fim-de-semana também para a Ana :)

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  4. Sempre pensei que se tivesse filhos a passar fome e não encontrasse trabalho, atracava um banco....
    Bom finde, querida.

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    1. És engraçada, Maria, mas tens razão. Acho que também era capaz de o fazer. Não é justo uns terem milhões e outros passarem fome.

      Bom finde também para ti, Maria :)
      Um beijinho:)

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  5. Diz o ditado, que a ocasião faz o ladrão..., e este texto ilustra isso mesmo!
    Uns por necessidade, outros por ganância, outros...
    Deliciosas estas histórias de Drummond de Andrade.

    Um beijinho, Isabel.:))

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    1. É verdade...ladrão que é ladrão, não resiste a uma boa oportunidade!...Ah!Ah!Ah!

      Estou a gostar imenso deste livrinho, que vou lendo intercalando com o 1ºvolume do "Jean Christophe", de que também estou a gostar. Agora vêm aí uns dias mais calmos, a ver se dá para ler um pouco mais. Este ano lectivo não li muito mais que no ano passado. Às vezes nem é a falta de tempo; é o cansaço que não me deixa concentrar e a minha falta de boa gestão do tempo. Estou velha, é o que é!

      Um beijinho e um bom fim-de-semana também para a Cláudia.
      Por aqui está um dia de calor, daqueles de Castelo Branco! :)

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