terça-feira, 26 de julho de 2011

Ainda Deus e o Diabo

... mas na obra de José Régio.


                    "O Diário"

Tinha um diário aonde ia escrevendo,
Dia a dia, a agonia dos meus dias:
Era um romance tremendo,
Dilacerado de piedade e de ironias.

Todas as noites escrevia nele
Quando voltava lá de baixo, lá do mundo,
Equanto na parede, um cristo imbele
Caía moribundo.

Um brandão quase verde dava luz...
Parecia que alguém ia morrer.
E eu, realmente, em frente da agonia de Jesus,
Agonizava horas e horas, a escrever.

Tudo o que a gente sente, ou pensa, e não confessa,
Tudo que só na escuridão a gente sonha,
O escrevia, com suor frio na cabeça,
E lágrimas no rosto incendiado de vergonha!

Assim eu descobria o meio de exercer,
Continuando entre vós, sem me desmascarar,
Todas as faculdades do meu ser:
Infâmias e virtudes que não ouso revelar...

E, quando enfim me abandonava, exangue,
Sobre o meu leito, a olhar o Cristo moribundo,
Gozava sonhos de oiro com relâmpagos de sangue,
E em que descia em mim até ao fundo.

Era assim que sabia possuir
Toda a minha Grandeza e toda a minha Corrupção.
Mentia-vos depois? Ah! o gosto de mentir
Com a verdade na mão!

Ora um dia (era um dia extraordinário),
Procurando escrever como nos outros dias,
Nada pude escrever, e pus-me a ler o meu diário:
Cheguei ao fim, tinha as mãos lívidas e frias!

Que o meu olhar agora cristalino,
Vira que nessas páginas, tudo era mentiroso:
Porque tudo o que em mim é só abjecto ou pequenino,
Lá surgia dramático, e, por isso grandioso.

Sim, todos esses crimes e heroismos só sonhados,
Todo esse mundo íntimo - era meu!
Mas o vulto que unia esses bocados,
Esse, ó poder do Artista! era maior do que eu.

E eu vi como não era a posse da Verdade,
Nem a libertação de quem se expande,
O que pedia ao meu diário... mas vaidade
De até no aviltamento me ver grande!

Ergui então o meu diário à luz verde-amarela...
Por um momento só no quarto houve mais luz...
E todo o resto dessa noite horrenda e bela
Chorei, torcendo as mãos em frente de Jesus.


  (retirado de: "Poemas de Deus e do Diabo" de José Régio, pág.112
  Portugália Editora )

                                                                             

                                                                               

Do poeta ( e não só ) conhecia pouco. Foi no blogue Sobre o Risco que descobri mais sobre a sua vasta obra.                                        

                                                                                  

8 comentários:

  1. José Régio tem uma rima fácil, muito musical.
    Quando comecei a ler pensei logo que poderia ser dele.
    Todos os escritores, músicos ou pintores têm o seu próprio cunho, não é?
    É uma poesia bonita e sincera.
    Deus e o Diabo...para mim não existem, para bem ou para mal.
    Beijinhos

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  2. Isabel,
    É sempre bom revisitar José Régio. Obrigado.

    Beijo :)

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  3. Fortes as palavras, da vontade de ler mais e mais. Bom saber que há ainda pessoas com gosto para leitura. Gostei daqui, estou te seguindo.
    Grande abraço.

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  4. Olá Maria
    Gosto do José Régio do qual não conhecia muito, mas de quem descobri agora mais coisas, através do blogue de Manuel Poppe.

    Já li pelo menos num texto seu, que não acredita.
    Eu acredito em Deus ou algo superior cujo entendimento nos ultrapassa, mas acredito.

    Um beijinho

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  5. AC

    Obrigada eu, por ler este cantinho.
    Fico contente quando aqui vem.
    Um beijo

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  6. Katharine

    Fico surpreendida e agradecida por ver uma cara nova aqui neste espaço.
    Obrigada por ter gostado.
    Bem-vinda.

    Um abraço

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  7. Gostei muito de ler este poema de Régio.

    "O Livro de Job" é um livro de Blake baseado no livro de Job dos livros "Sapienciais" do Antigo Testamento. Não li este livro de William Blake, a não ser alguns trechos com as ilustrações. (li on-line).
    Gosto muito dos desenhos dele e da poesia.

    Beijinhos e foi um dia muito bem passado! :)

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  8. Foi um dia bem passado,sim.Obrigada.
    Ainda fui ver "Sonhos de dança nos passos de Pina Bausch" ao Cine-Teatro.Muito interessante.

    E vou ler o livrinho do W.B.
    Boa noite Ana

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