sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A Complicada Arte De Ver

Mais um texto que recebi por mail.
Chegou-me como sendo de Rubem Alves.
Não conhecia e achei-o muito interessante.
Aqui fica.




"Ela entrou, deitou-se no divã e disse:
- Acho que estou ficando louca.

Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura.

- Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria!
Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas.
Ato banal sem surpresas.
Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto.
Percebi que nunca havia visto uma cebola.
Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.
De repente a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora tudo o que vejo me causa espanto.


                                                                                     

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as Odes Elementales, de Pablo Neruda.
Procurei a Ode à Cebola  e lhe disse:
Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: "Rosa de água com escamas de cristal".

Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver.


                                                                              

Ver é muito complicado.
Isso é estranho porque os olhos, de todos os orgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica.
A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objecto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro.
Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê."


                                                                            

Sei disso por experiência própria.
Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.
Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura.
Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.


                                                                             

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios." , escreveu Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram."


                                                                            

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção. ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".


                                                                          

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objectos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam...Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em orgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.


                                                                        

Os olhos que moram na caixa das ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança , eternamente: " A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas."


                                                                              

                                                                      
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...


                                                                                 

a complicada arte de ver

rubem alves

6 comentários:

  1. Definitivamente ver é a questão, aprender a ver a solução.
    Acreditamos nisso.

    O texto é maravilhoso isabel, não conhecíamos, mas nos encheu os olhos, faz nos sentir acompanhadas.

    5 bjs

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  2. Bonito texto, e fotos muito sugerentes.
    Mais que complicada, a arte de ver é um dom com que se nasce ou não, penso, embora se possa fomentar, claro.
    Os olhos não gozam, por isso é tão bom ver as coisas estando bem por dentro, a beleza comove e sossega quando a paz a pomos nós, creio eu!
    Bom finde, beijinhos

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  3. É muito interessante o texto e faz-nos pensar que há mesmo outras formas de ver.
    Um pouco como diz o Principezinho "ver com o coração".
    Ainda bem que gostaram.
    Um dia bom
    5 beijinhos

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  4. Obrigada Maria por gostares sempre das minhas fotos.
    Sabes porque as coloquei? Procurei algumas das que estavam mais a jeito para ilustrar o que o texto me sugeriu: aprender a ver sem ser o que está imediatamente à vista. Desde que comecei a ver blogues e depois com o meu, e muito por ver as fotos da Maria João e da Ana, comecei também a tentar ter outro olhar sobre as coisas. A tentar ser mais observadora. E sem nenhuma pretensão, pois sei que estou a começar a aprender, acho que já vou tirando fotos a coisas que antes me passavam despercebidas. E muito mais tiraria se tivesse a máquina adequada, mas não tenho.

    Eu acho que a arte de ver é um dom com que se nasce, mas também se pode educar e aprender. Não achas?
    Gosto da tua frase "a beleza comove e sossega quando a paz a pomos nós".
    Bom finde, Maria
    Beijinhos

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  5. Sinceramente penso que tens bom gosto para a fotografia, senão não to diria. Acho a terceira e a quinta criativas, tenta aprender mais, há revistas estupendas. Exige-te a ti mesma à hora de mostrar resultados,(tu sabes que vale mais uma foto boa, pessoal e única, que vinte regulares, és uma pessoa exigente). Ânimo!!

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  6. E tempo?
    Todos estes gostos vão ficando adiados ( e gosto de tanta coisa...).
    Mas vou tirando sempre fotos e agora até já gosto da máquina digital, que permite tirar muitas, para tentar fazer uma melhor.

    Esta semana já perdi uma foto giríssima. Mesmo já ao entardecer, uma lua redonda e bonita e por baixo o rasto de um avião que passava. Muito gira, mas a minha máquina não dá para essas fotos.

    Sabes, aquelas que gostaste, da árvore tenho mais. Foi na piscina, com o sol mesmo ali em cima e aquele azul tão bonito. A das nuvens...tenho muitas. Nuvens é comigo. Farto-me de tirar.

    Sempre gostei de tirar fotos.

    Beijinhos e obrigada pelo incentivo

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