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terça-feira, 7 de agosto de 2018

Livre arbítrio


Poema do livre arbítrio

Há uma fatalidade intrínseca, insofismável,
inerente a todas as coisas e nelas incrustrada.
Uma fatalidade que não se pode ludibriar,
nem peitar, nem desvirtuar,
nem entreter, nem comover,
nem iludir, nem impedir,
uma fatalidade fatalmente fatal,
uma fatalidade que só poderia deixar de o ser
para ser fatalidade de outra maneira qualquer,
igualmente fatal.

Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.
Eu sei que posso fatalmente escolher entre o bem e o mal.

E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.
Já sei que escolho fatalmente o bem.
Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,
como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.
O meu livre arbítrio
conduz-me fatalmente a uma escolha fatal.

António Gedeão

                                                                                   


Myra Landau

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Aurora Boreal


Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
Por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

António Gedeão

                                                                                  
 
A infância é o tempo em que todas as janelas se começam a abrir.
 
 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A relatividade das coisas


Poema das coisas belas

As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
porque motivo serão belas?
E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos vêem.
Mas porque será belo o pôr do Sol?
E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando coisas percebidas,
porque direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?

Se acaso as coisas fossem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?

António Gedeão

                                                                                   
 
Myra Landau
 

domingo, 4 de novembro de 2012

Poema Das Árvores


As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.


António Gedeão