...principalmente porque muitos têm muito mais (milhões) do que aqueles a quem roubam :(
O Ladrão
Por isso mesmo, sentia-se chocada com o acontecimento. Por que lhe faziam uma dessas? Pedissem qualquer coisa razoável, daria. Se não tinham coragem de pedir, se eram pobres envergonhados, que diabo, levassem objetos caseiros, sem história. É certo que ladrão não pode saber se um objeto está carregado de afetividade, e que dinheiro nenhum o compra.
Foi ao andar de cima conferenciar com o vizinho. Êle nada percebera, mas armou-se de pistola e resolveu caçar o ladrão, que pelo visto descera do morro próximo. Sempre desconfiamos do morro, como se êsse acidente geográfico retivesse propriedades maléficas, extensíveis aos indíviduos que o habitam. Mas enfrentar o morro, àquela hora da noite, seria temeridade. Já ao transpor a porta da rua, o vizinho decidiu ficar por ali mesmo, pistola em punho, vistoriando os suspeitos que passassem, e não passaram.
Na noite seguinte, passou foi a patrulha de Cosme e Damião, que, inteirada do fato, pensou logo em Curió.
- Curió hoje de tarde estava querendo vender uns troços de ouro, umas correntinhas.
- Então me tragam o Curió que eu quero conversar com êle. Mas por favor, não o maltratem, hein - pediu minha amiga.
Curió apareceu pela manhã encalistrado, com os policiais. Pequeno, modesto, simpático. O vizinho correu para apanhar a arma. "Não faça isso - ordenou-lhe minha amiga. Vamos conversar sentados no chão, que é melhor." Cosme e Damião preferiram ficar de pé, Curió não se fêz de rogado, e o vizinho adotou o figurino.
- Curió, foi você quem levou minhas jóias de estimação?
De cabeça baixa, Curió admitiu que sim. Passara por ali, à hora em que o bloco descia, viu luz acesa, nenhum movimento, janela baixa, e tal, ficou tentado. Conhecia de vista a moradora, até simpatizava com ela. Mas praquê deixar tudo aberto, exposto, provocando a gente?
Lealmente, ela aceitou a censura, reconhecendo que não cuidara.
- Você fuma, Curió?
- Aceito, madame.
Cigarro ajuda a resolver. Cheio de boa vontade, Curió não podia restituir tudo. Parte dos objetos fôra vendida, os brincos ele dera a uma senhorita. O colar, o relógio e dois broches, sim, devolveria se madame não fizesse galho.
- Estão aí com você?
- Não, madame, mas pode fiar do meu compromisso.
O vizinho ia exclamar: "Essa, não", porém minha amiga pediu-lhe que se abstivesse de comentários. Continuaram negociando amigàvelmente. Aquela fôra a primeira vez, Curió vive de biscates, vida apertada, madame compreende. No outro dia voltou com as jóias, menos as vendidas, e prometeu tomar os brincos à namorada. Minha amiga achou que não valia a pena magoar a môça, e louvou o desprendimento de Curió. E agora sua casa tem, numa só pessoa, encerador, bombeiro e cão de guarda, procurados há muito. O vizinho é que, indignado, e dizendo-se sem garantias, pensa em mudar-se."
1958
Carlos Drummond de Andrade, A Bôlsa & A Vida, pág.126 a 129.
Gatunos por todo o lado.
ResponderEliminarInfelizmente assim é Diana! E os maiores de todos andam por aí à solta a rir-se descaradamente do povo que os sustenta! Mas isso é outra conversa...
EliminarEste ladrão da história era um ladrão simpático:)
Bom fim-de-semana, que está aí à porta:)
Este episódio da A Bolsa & a Vida relatada por Drummond é curiosa !
ResponderEliminarSegundo entendi o Curió passou a trabalhar para a Madame.
Era um ladrão sério.
Um beijo, Isabel.
Sim, também entendi assim. O Curió era um homem (quase sempre) honesto, que cedeu ali à tentação da janela aberta...e depois acabou tudo em bem, e com ele a trabalhar para a Madame.
EliminarAchei muito gira. E a maneira de escrever é engraçada. Este livro tem textos muito giros.
Um beijinho:)
Que bom seria, se todos os conflitos, se resolvessem na base da negociação...
ResponderEliminarMuitas vezes, quem foi roubado, nem tem para quem apelar... estou-me a lembrar dos conflitos, já havidos durante esta tarde, com os lesados do BES...
Beijos, Isabel! ♥ Um bom fim de semana!
Ana
É o que penso, mas esta ladroagem de agora é uma coisa mais séria: é muito bem organizada e não se contenta com umas coisinhas sem grande valor...
EliminarNão consigo perceber como é que nunca ninguém é responsabilizado...
Beijinhos e um bom fim-de-semana também para a Ana :)
Sempre pensei que se tivesse filhos a passar fome e não encontrasse trabalho, atracava um banco....
ResponderEliminarBom finde, querida.
És engraçada, Maria, mas tens razão. Acho que também era capaz de o fazer. Não é justo uns terem milhões e outros passarem fome.
EliminarBom finde também para ti, Maria :)
Um beijinho:)
Diz o ditado, que a ocasião faz o ladrão..., e este texto ilustra isso mesmo!
ResponderEliminarUns por necessidade, outros por ganância, outros...
Deliciosas estas histórias de Drummond de Andrade.
Um beijinho, Isabel.:))
É verdade...ladrão que é ladrão, não resiste a uma boa oportunidade!...Ah!Ah!Ah!
EliminarEstou a gostar imenso deste livrinho, que vou lendo intercalando com o 1ºvolume do "Jean Christophe", de que também estou a gostar. Agora vêm aí uns dias mais calmos, a ver se dá para ler um pouco mais. Este ano lectivo não li muito mais que no ano passado. Às vezes nem é a falta de tempo; é o cansaço que não me deixa concentrar e a minha falta de boa gestão do tempo. Estou velha, é o que é!
Um beijinho e um bom fim-de-semana também para a Cláudia.
Por aqui está um dia de calor, daqueles de Castelo Branco! :)
Uma delícia, à Drummond. :)
ResponderEliminarPois é :)
Eliminar